Thursday, December 29, 2011

SANGUE

"Vendedor, vidraceiro, varejista..."
Bilheteiro, degustador de refri, hummm...

Essa parece ser uma boa profissão.
Eu trabalhava há 10 anos na Pontes Farias Imóveis. Advogado diplomado e corretor por livre e espontânea pressão, é o ramo da minha família.
Costumo brincar que os Pontes vieram de Portugal num navio, vendendo imóveis entre os doentes e loucos, durante aquela viagem de 5 meses para o Brasil.

"Vendedor, vidraceiro, viciado...", poderia estar escrito no guia de empregos que eu passava os olhos todos os dias, sem distinção alguma... eu ganhava bem, 20 pau por mês, usava e abusava, e gastava numa velocidade de um fórmula 1.
Normalmente, lá pelo dia 15 do mês, eu não tinha mais um vintém.

Quem mandou ser culto? Listas de cds, livros, dvds de filmes, não tem fim, festas, pó e casas de swing faziam eu me aperfeiçoar na arte de pedir dinheiro emprestado após o dia 15.

Um dos contos que eu mais gostava chamava "Asas"(http://enforquesenacordadaliberdade.zip.net/arch2010-03-01_2010-03-31.html#2010_03-27_01_30_17-100440064-0 ), era de um cara que se apaixonava por um anjo, alguma coisa assim, não lembro direito...

Assim como a vida imita o conto,a arte, ou seja lá o que for, eu esperava encontrar uma estória, um causo que pudesse contar para os netinhos( nem filho eu tenho, vai demorar,então...), não sei se foi o arranjo, formato, as cores das letras, o anúncio me pegou na cadeira!

"Emprego? Venha perder..."
Só isso. Tinha o endereço, sem telefone, email, nada.
Domingão, calor do caralho, era cedinho, um tédio insuportável, resolvi dar uma conferida no local, normalmente faço isso, para no dia não chegar atrasado, esbaforido e suado... odeio aquela gota de suor que vai descendo pelas costas e acaba parando no rego, encharcando a camisa social, cueca, calça. Mesmo no calor não consigo usar outro traje que não seja roupa social, não adianta, isso é de pai pra filho, meu bisavô, podia fazer sol ou chuva, inclusive, ia à praia de terno e gravata, de domingo a domingo, seu traje era blazer.
Levei o terno na mão e caminhei em direção ao ônibus, desde a minha primeira grande crise, tive que vender o carro, isso faz uns 10 anos, com o salário que ganho, já poderia ter comprado outro, mas cansei de ver tanto anúncio na tevê, tanto trânsito, aboli de vez. Nunca me esqueço daquele quadrinho, mostrava um cara preso no engarrafamento, xingando, nervoso, é a legenda para esse cara :" O Vencedor",e do lado um outro, andando, livre, feliz da vida, e a legenda:" O Perdedor".

É mais ou menos o que eu penso, o problema é sair de madruga duma festa, com a namorada a tiracolo, e ficar esperando um táxi que nunca vem.
Deixando as conjecturas de lado, cheguei ao prédio , rua Hélio Pellegrino, um prédio vermelho e um amarelo ralinho, parecia a bandeira da Turquia(?). Não tinha porteiro, zelador, nada, só uma campainha para um único andar.
Toquei. Ninguém atendeu. Escutei o barulho de passos no apê. A porta abriu. Um tremendo de um barulhão.

Dentro, uma claridade que incomodava, cheiro horrível de enxofre. Gargalhadas e choro. Se o inferno existir, é ali... é aqui.
Sinto um calafrio percorrendo minhas entranhas. Uma ruiva espetacular estava a minha frente. Não podia acreditar. A cor dos seus olhos eram pretos, mas um preto que eu nunca tinha visto. Ela tinha a voz da minha mãe. Uma ocasião eu li que a gente se relaciona com mulhereres parecidas com a nossa mãe.

" Você aceita um chá?"
Estava um calor dos diabos.
"Aceito sim. Pouco açúcar, tenho diabete"
"É diabetes!"
"Foi o que eu falei"
"Nao, você disse... ah, deixa pra lá..."

Como uma mãe que entende as travessuras do filho,a ruivaza ficou quieta.

"Que tipo de trabalho você está procurando?"

"Um que dê pra alimentar a prole"

"Você não tem filhos"

"Como você sabe?"

"Nós sabemos de tudo"

Fiquei pensando o que ela queria dizer com "nós"?

"Nós temos só dois tipos de trabalho: entrega e retirada"

"Entrega e retirada de quê?"

"No caminho eu explico"

Uma coisa que eu ainda não entendia: em nenhum momento a ruiva perguntou o porquê de eu ter vindo no domingo e não na segunda...

Ela me levou numa salinha, com pôsteres dos rappers mais famosos na época. "Tem alguém aqui que é bem fã desses caras do rap...?"

"Pois é, tenho que ficar aguentando esses malas..." Tinha atitude a ruiva.

"Não perguntei seu nome..."

"Continue me chamando de ruiva".
Não estava gostando nem um pouco dessa história.

Fiquei esperando por uma, duas horas. Chegou um momento que não aguentei mais e abri a porta. Chamei pela ruiva,e nada. Dei uma olhada na casa, estava vazia. Fui pra minha casa. Lugarzinho ruim de se conseguir um táxi.

Na segunda-feira voltei lá. Dessa vez, quem me atendeu foi uma japa.
"Seja bem vindo!"
"Olha, ontem estive aqui e..."
"Desculpa, tivemos um contratempo, alguns caçadores vieram aqui"
"Caçadores?"
"Sim, no caminho eu explico". Falaram isso ontem pra mim.

Imaginei: lá vou eu pra salinha dos rappers de novo. " Não, é uma sala no estilo clássico".

Dessa vez não demoraram quase nada. Após 15 minutos,a ruiva apareceu.
"tenho um trabalho pra você. 5 mil reais só pra levar esse pote até Alphaville"
"isso é uma anedota? Onde estão as câmeras?"

"Entregue e você vai ver se estamos brincando..."

Peguei dois metrôs, um trem, mais um busão e um táxi, finalmente cheguei em Alphaville 5 em quatro horas. "Tá bom!". Fiquei o caminho inteiro curioso pra saber o que tinha no pote. Não abri. Em Alphaville foi atendido por uma moça parecida com a Caroline Scarpa, era mais branca que a neve.

Ela falou para eu esperar um pouquinho. Depois de uma hora, como esse pessoal gosta de fazer a gente esperar. Ela veio com um envelope cheio de dinheiro. Não acreditei, era o dinheiro mais fácil que ganhara na vida.

Essa rotina continuou por um ano. É claro que , abandonei meu emprego anterior. Estava tirando 25 mil reais por semana. E o expediente só de segunda a sexta.
Nunca tive coragem de abrir o pote.

Estava um frio danado, sem querer, me recordo como se fosse hoje, dia 20 de abril, o ônibus, deu uma freada brusca, me segurei no frasco, retirei a tampa sem querer.

O que parecia estar lá dentro era sangue. Um sangue pastoso. Reparei que tinha acabado de ser retirado de uma criança(com o tempo fui criando experiência). No caminho de volta comecei a tremer de medo. Sabia que não haveria trégua.

"Por que você fez aquilo?"

"Me perdoe, não foi a minha intenção, vocês viram que foi um acidente...?"

"Nunca mais repita isso"
"OK!"

É claro que após um mês(cravado), eu fiz a mesma coisa,e agora fui além.

Perguntei para o cliente pra quê servia aquilo.

O garotinho de uns 8 anos, nove anos, aparentemente, me olhou feio e bateu à porta. Eu não ia desistir assim tão facilmente. Resolvi entrar em sua casa. Não acreditei no que vi; o menino bebia o sangue com canudinho do McDonalds. Ele se assustou. Veio pra cima de mim, joguei uma cadeira no moleque, aquilo não era gente, ele tentou me morder, peguei um isqueiro, acendi e botei fogo na sua cara. O grito era de um animal. Imediatamente, dois caras entraram pela janela e levaram o garoto, me ameaçaram de morte.
Eu estava vivendo em um filme de terror. Eram vampiros. Achei que só nos livros da Stephenie Meyer existiam uma coisa dessas. Tinha assinado meu atestado de morte. Não poderia voltar para o prédio da bandeira da Turquia. Precisava bolar um plano. Não tinha a mínima ideia. Todos aqueles anos vendo filmes de vampiros, zumbis, não serviram pra nada.

Peguei o primeiro trem para uma cidade mais próxima. Voltei a procurar um emprego. Fiz alguns bicos, fiquei vagabundeando pelas ruas, bares, tentando entender o que tinha acontecido. Voltei ao emprego antigo, eles tinham filiais. Ganhava os mesmos 20 conto por mês. Sentia falta daquela adrenalina.

Conheci uma moça. Casei com ela, tivemos três filhos. Consegui uma bela de uma casa, e um carro que ainda estou pagando as prestações.

Eu adorava a minha mulher, ela era ruiva.

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